segunda-feira, 10 de junho de 2013

A Invasão e a Evangelização na América Latina


Resenha do texto: LEÓN, Mário A. Rodríguez. A Invasão e a Evangelização na América Latina (século XVI). In: DUSSELL, Enrique. Historia Liberationis: 500 anos de História da Igreja na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1992, pp. 69-88.

 Felipe Sardinha Bueno

            “A espada e a cruz marcharam juntas na conquista e despojo colonial” (GALEANO apud  LEÓN, 1992, p. 81) - O presente texto tem por eixo temático central o processo colonizador ibérico (luso-hispânico) na América Latina, a construção da evangelização – a introdução dos trabalhos do Catolicismo nesse continente, e dessa forma as contradições erigidas entre o Evangelho – causa prima do anúncio da fé – e os interesses das Coroas, nem sempre tão “cristãos”, i.e., fundamentados na cultura da exploração do “Novo Mundo”, seja da terra, seja dos nativos (encomiendas).

            No que tange à estrutura metodológica utilizada pelo autor, a produção do corpo textual se deu da seguinte forma: subdivisão em nove partes, sendo oito referentes ao caminho de dominação dos novos territórios por parte dos reinos de Espanha e Portugal, sendo especificado em cada item como se deu a penetração desses junto com a Igreja em cada região de colônia: La Española, Porto Rico, Cuba, O México e a América Central, Costa Firme (Colômbia e Venezuela), A zona andina dos incas (Peru e Equador), O cone sul (Argentina, Paraguai e Uruguai), e o Brasil (única colônia portuguesa). O último ponto redigiu-se à guisa de observações finais.

            Antes de se adentrar no aspecto eclesial das primícias históricas da América Latina, necessita ser compreendido o porquê dessa “missão” desbravadora dos espanhóis e portugueses. Não era somente o interesse de evangelização dos pagãos que se erguia na mentalidade branca, contudo o marcado desejo econômico, de encontrar ouro e prata, de enriquecer a custa dos índios, de usurpar suas terras e delas retirar as riquezas encontradas. Pode-se lembrar como exemplo Potosí, “nervo principal do reino”, conforme afirmou o vice-rei de Peru, Hurtado de Mendonza. Foi essa dinâmica de manipulação dos metais preciosos, a qual permitiu a edificação de palácios, catedrais, mosteiros, enfim o deslanchamento da aventura colonial. Interesses de Cruz (anúncio da Boa Nova aos não-cristãos) e Espada (controle de terras e servidão) interconectados.   

            Quando se fala do papel da Igreja nesse contexto elencado acima, não se pode generalizar a ação dos seus “filhos”, de modo particular os religiosos, principais personagens no ato evangelizador, como caráter uniforme, ou seja, todos ao lado dos opressores ou dos índios. Assim como houve franciscanos, mercedários, dominicanos, agostinianos, clérigos seculares, e bispos pró-Metrópole, entre eles: Frei García de Toledo (“cristologia ao revés”, o ouro como mediação da redenção dos índios, pois foi graças a ele que os conquistadores chegaram e puderam oferecer a salvação trazida por Cristo), Frei Bartolomeu de Olmedo (companheiro de Hernán Cortês, líder o qual dominou os aztecas em México e favoreceu a conversão desses à fé cristã), o bispo Manso (que solicitou ao então imperador Carlos V a compra de escravos trazidos da África para edificação de sua catedral e do labor de suas areias auríferas), Frei Miguel Ramírez (dominicano, bispo em Cuba, indiferente às injustiças vigentes); houve também aqueles que defenderam os índios, foram opositores à escravidão desses nativos e manifestaram-se contrários, por essa conduta, aos colonos que intentavam no massacre a esses fragilizados pelo sistema mercantilista de sua época. Dentre eles podemos destacar: Frei Bartolomeu de Las Casas, Frei Antonio Montesino, D. Antonio de Valdivieso, bispo em Nicarágua (martirizado a mando do governador local, Rodrigo de Contreras), entre outros.

            Sendo diferentes as posturas dos protagonistas da evangelização, assim também o foi no método utilizado no projeto expansionista da Doutrina, e na relação com a “matéria humana” encontrada, i.e., índios de tradições distintas, de modus vivendi diferentes: maias, aztecas, incas, taínos (que acreditavam em um único deus supremo), cujas recepções aos “arautos da fé” também se comportaram variadas, alguns os aceitaram com tranquilidade, como no Uruguai (cf. p. 81), outros, não obstante, com agressividade ao ponto do martírio acontecer com frades dominicanos em Piritu, na Venezuela, em 1515 (cf. p. 78). Porém, aquilo que de fato foi comum em quase todos os territórios foi a dizimação de parte significativa das populações locais, que por aderirem ao Catolicismo não conseguiram necessariamente se manter livres dos anseios exploratórios e crueis dos colonos, a ponto de em Cuba de 100 mil nativos terem sido diminuídos à soma de 14 mil em 1532.

            Em meio a essas tribulações político-religiosas, a Igreja foi estabelecendo seus alicerces, criando dioceses (São João do Porto Rico – primeira a ter bispo – D. Alonso Manso, em 1512 - nas novas terras conquistadas. Faz-se mister ressaltar que os três primeiros bispados eram sufragâneos da sede episcopal de Sevilha); arquidioceses (México – em 1546); formando comunidades religiosas (Em 1559, no México, existiam 80 casas franciscanas com 380 frades, 40 residências dominicanas com 210 frades e 40 conventos agostinianos com 212 frades); construindo igrejas, erigindo paróquias e até mesmo abadia (Em 1515, na Jamaica).

            Diferentemente do avanço das estruturas institucionais na América espanhola, no Brasil, colônia portuguesa, caracterizou-se de modo lento, inclusive pelas suas dimensões físico-geográficas. Ocorreu a forte participação de outro grupo que terá importância na História da cristianização latinoamericana, que foram os membros da Companhia de Jesus, os quais se espalharam pelo território, catequisando os índios em  língua tupi-guarani, fato que incomodará o bispo Sardinha – primeiro bispo dessa colônia, cuja diocese foi criada em 1551.

            Certamente observando esses dados pode-se intuir que a aliança entre Cruz e Espada se consolidou não como evento simplista e pacífico. Existiu muita oposição, divisão entre religiosos, e derramamento de sangue em quantidade expressiva. Mesmo entre os leigos que estiveram nessas terras, haviam aqueles de boa índole, com reta consciência, autênticos cristãos, os quais não se conjugaram como dialéticos com a opressão exercida por seus compatriotas.  Frei Mário Leon, autor desse texto, termina por nomear esse período como provido de “luzes e sombras” (cf. p. 86), e dessa forma convida-nos à reflexão e ação a partir da perspectiva dos pobres e marginalizados, há séculos condenados em nossas terras; exorta-nos a virarmos essa roda histórica, a não repetirmos certos erros e a verdadeiramente assumirmos o projeto do Reino de Deus e a justiça a ele entrelaçada.

Igreja e regime político militar no Brasil


Resenha do texto: LUSTOSA, Oscar Figueiredo. Igreja e regime político militar no Brasil: o ritmo das contradições (1964-1984). In: ID. A Igreja católica no Brasil República. São Paulo: Paulinas, 1991, 72-88.

 Felipe Sardinha Bueno
 

“[...] Igreja como comunidade a serviço do povo” (p. 85) – a configuração histórica da Igreja Católica no Brasil no período militar-ditatorial, correspondente ao período de 1964 a 1984, nem sempre assumiu a postura prevista pela citação inicial desse texto: devido à “marxismopatia” presente nos círculos católicos, com a derrubada do governo de João Goulart (de tendência populista com alianças esquerdistas), a Igreja mostrou-se favorável, de início, à pseudo-ordem estabelecida pelos militares, os quais se apresentaram, em muitos casos, como “cristãos” no que tange a sua identidade religiosa oficial (Ernesto Geisel era protestante) e respeitadores dos direitos das igrejas, sendo, tal colaboração, com o Estado e aos “interesses da pátria”, uma artimanha ideológica de utilização da Igreja na contribuição aos interesses desses detentores da autoridade política (generais e marechais à frente do país): Costa e Silva, por exemplo, encontrando-se com o papa Paulo VI, na segunda metade dos anos sessenta, em gentilezas ao pontífice, indicaria, não verdadeiramente, um clima idealista de paz e entendimento, sem atitudes de pressão aos membros da Igreja envolvidos com o propalar de um Brasil distinto.

Já no engatinhar do regime, a religião católica foi observando as falácias presentes no agir daqueles que deveriam prover o bem comum. Com a Lei de Segurança Nacional adjunta aos atos institucionais promulgados pelo poder executivo, além do modelo de educação das consciências por meio de disciplinas escolares tais qual Moral e Cívica, a Igreja foi se mostrando contrária a esse “modelo de ser estatal” – pode-se aqui se lembrar do Centro de Estudos e Ação Social da Bahia, mantido pelos jesuítas, que denunciava a cúpula governamental por se apoiar sobre o campo “estritamente espiritual” da Igreja, i.e., a tentativa de calar seus posicionamentos sócio-políticos em detrimento do cumprimento único da função transcendente do anúncio cristão. A ditadura, nesse sentido, se degenerará, permitindo-se à tortura, perseguição e até morte de “inimigos políticos”, aqueles que não jogavam com as regras do sistema vigente. Entre as vítimas podemos apontar padre Henrique Pereira, assassinado em 1969, assistente de Dom Hélder Câmara (arcebispo de Olinda e Recife). Havendo também observação atenta dos militares a algumas lideranças eclesiais desse tempo como a D. Pedro Casaldáliga (S. Félix do Araguaia), D. Paulo Evaristo Arns (São Paulo), D. Tomás Balduino (Goiás), D. Estevão Avelar (Conceição do Araguaia) e D. Alano Pena (Marabá-Pará), sendo os dois últimos passivos de interrogatório pelo exército em Belém do Pará, na pessoa do general Euclides de Figueiredo.

“A Igreja oficial começa a abrir os olhos e tomar consciência de que o governo dos militares tinha ido longe demais na política de coerção [...]” (p. 80) – esse comportamento se denotará de forma direta na comunidade católica (não em sua totalidade, pois alguns fieis direitistas-burgueses permanecerão ao lado do governo tirânico) pela participação em atos coletivos anti-repressão (casos de W. Herzog e Manuel Fiel Filho) e indireta, pelo processo de conscientização política, crítica e objetiva, manifesto em publicações da CNBB como “Exigências cristãs de uma Ordem Política” (1973), “Comunicação Pastoral ao Povo de Deus” (1976), “Reflexão cristã sobre a conjuntura política” (1981), “Por uma nova ordem constitucional” (1986). Será nesse contexto que se desenvolverá um compromisso forte na causa dos pobres por parte de setores da hierarquia eclesiástica (bispos, padres e leigos), os quais não aderindo à opressão do Estado, estarão engajados na luta pelos vulneráveis da sociedade, os oprimidos e marginalizados. As comunidades eclesiais de base (CEBs), nesse contexto, terão papel elementar de contribuição na busca pela justiça.

Diante do processo de democratização, a Igreja voltará a manter relações de diálogo com o Estado, estando presente, inclusive, nas discussões sobre a Assembleia Constituinte, como tentativa de resposta aos anseios populares. A CNBB mostrar-se-á atenta a que assuntos de caráter familiar sejam tratados e equacionados. Frei Lustosa cita, por exemplo, a problemática sobre o divórcio, surgida no passado, retomada e legalizada já em 1976.

A Igreja, vivenciando seu papel social, colocará em pauta argumentos que valorizem a política a partir da interpretação à luz da fé, defendendo os princípios evangélicos acima dos partidarismos existentes.

O autor percebe as falhas nesse processo, que pelas alianças Estado-Igreja, se perderam atitudes de defesa ao povo. Porém, sua análise não se afirmará em todo negativa no que se refere a seus juízos intelectuais: avaliará um resgate da imagem do Cristo-Bom Pastor na comunidade católica brasileira, não apagando as seqüelas, em plenitude, do sistema corrompido do matrimônio institucional-estatal inaugurado já por Constantino (313) e postergado (transferido) para nossa realidade séculos adiante. Todavia de modo diferente, Lustosa indica em seus apontamentos, a vivência retomada, nos últimos tempos, do anúncio da Boa Nova aos pobres (dinâmica de ir ao encontro), que é missão inegociável da Ecclesia Cristã Católica.

 

O Evangelho de São Mateus


Resenha do texto: CARTER, Warren. O Evangelho de São Mateus: Comentário sociopolítico e religioso a partir das margens: São Paulo: Paulus, 2002. P. 15-80.

 
Felipe Sardinha Bueno
 

            O referido texto aborda como centralidade temática a construção semântica do Evangelho de São Mateus, no que tange ao ambiente que foi gestado, a fundamentação de elementos utilizados trazidos da tradição judaica, o público-alvo (“audiência” – termo usado pelo autor), e as concepções de conflito e “marginalização” presentes no decorrer da obra.

            No que se constitui como metodologia inerente, o corpo textual analisado é subdividido em dez partes, respectivamente: Ler e escutar uma contranarrativa; o que fazem os evangelhos? Legitimar uma identidade e um estilo de vida; como o evangelho forma a identidade comunitária e modela o estilo de vida; o evangelho de Mateus: quem, onde e quando; discipulado em Antioquia; onde estão os cristãos de Mateus em Antioquia; a audiência de Mateus: numericamente pequena; tensão com a sinagoga; presença imperial romana; e defendendo uma existência marginal.

            “O evangelho constrói uma cosmovisão e uma comunidade alternativas. Afirma um modo de vida marginal às estruturas dominantes” (p. 15) – Carter introduz sua reflexão abordando a observação de que o evangelho é caracterizado por ser radicado em mecanismos marginais da sociedade: pobres e excluídos. Enquanto as elites judaicas se aliavam ao poder imperial de Roma para sustentar e manter seus interesses de classe, sócio-político-econômicos, a grande massa popular, incluindo os nascentes cristãos, eram profundamente oprimidos, explorados e esquecidos pela autoridade vigente. Os estudos escriturísticos levam a crer que tal evangelho foi elaborado entre os anos oitenta e noventa do primeiro século da era cristã (pós-destruição do templo de Jerusalém em 70 d.C), o que leva a pensar que a Boa Nova de Marcos (formulada antes do ano setenta) fora parte da fonte documental para o erigir do texto mateano.

            Sabe-se que o autor não se identifica como a mesma pessoa do discípulo Mateus, citado no próprio corpo evangélico (cf. Mt 9,9). Provavelmente, entre as hipóteses apresentadas, o desconhecido escritor aproveita o nome desse líder, o qual no passado foi animador da comunidade, a qual é endereçada a obra; ou a própria utilização estilística do nome grego, que se aproximando a mathetes (discípulo) pode apontar para o objetivo dessa Boa Notícia publicada, que é formar e auxiliar a igreja no seu caminhar apostólico no seguimento a Jesus.

            Crê-se que a audiência desse evangelho, i.é, os seus destinatários sejam oriundos de Antioquia, localidade importante na Síria, onde se encontram muitos judeus em diáspora, além de ser um local de presença romana intensa.

Um dos pontos observados é o conflito existente entre a sinagoga (ambiente de comunhão de fé judaica) e os novos adeptos da ekklesía nascente, que começam a assumir o seguimento a Cristo, o qual é visto como não opositor da Lei, Torah ou Escrituras Sagradas, mormente seu fiel cumpridor, onde as promessas do Antigo Testamento se realizam.

 

·         Marginalidade e conflito

 

O deixar-se trilhar nos caminhos de Jesus não se constitui como tarefa simples desde os tempos das primícias do Cristianismo, período (primeiro século) e espaço (Oriente Médio: Palestina, Antioquia) gerador do evangelho de Mateus. Contrário ao imperialismo cruel dominante, a proposta alternativa concretizada na comunidade dos discípulos de Jesus se efetivará na fraternidade, justiça e amor mútuo, superando litígios de desigualdade entre pobres e ricos, homens e mulheres, judeus e não-judeus, reconhecendo um novo mundo possível, o “império de Deus” (Basiléia thou Theou), onde a vida e a dignidade de cada um são respeitadas como princípios inalienáveis. Sabe-se, porém, que esse modus vivendi aparentava-se fenômeno ameaçador à manutenção dos interesses de uma minoria detentora do poder, o que levará à marginalização desse grupo cristão, o qual por aderir à pessoa de Jesus, terminará por assumir consequentemente e livremente o status de marginalidade social (voluntária).

A denúncia não se restringirá à arrogância da autoridade romana, todavia aos próprios judeus que não aceitam Jesus como o enviado do Pai. Certamente tal expressão contrária se dará por duas razões: primeiramente pela exclusão progressiva dos cristãos da sinagoga (comunidade judaica), e também pelo fato de se observar na destruição do templo de Jerusalém uma conseqüência do não reconhecimento a Jesus como aquele que providenciou a salvação/ redenção. Com essas chaves de leitura pode-se entender o porquê da denúncia da sinagoga como ambiente de hipocrisia e violência, não obstante por razões de fidelidade hermenêutica, faz-se necessário analisar que o contexto não favorável aos cristãos em Antioquia e em demais localidades do império e da presença judaica massiva não era nada fácil.

Esse povo judeu apesar de tais denúncias, não será totalmente “ojerizado” pelo autor sagrado. A comunidade primitiva é formada, em boa parte, por judeus, além dos pagãos (prosélitos). A aliança estabelecida nos tempos patriarcais não será abolida, mas renovada, ampliada. Jesus se configurará desde os primeiros versículos da obra mateana como descendente de importantes personagens da história da salvação, como Abraão, Isaac, Jacó, Judá, Salomão, entre outros (cf Mt 1,2-17) além disso apresentar-se-á como revelador da vontade divina desde o começo (cf. 19,3-6), passando pelo ensinamento de Moisés (cf. 8,1-4), Davi (cf. 12,3; 22,42-45) e dos profetas (cf. 9,10-13). O seu sangue não será, porém visto plenamente e propositalmente como “puro” nas concepções formuladas pelos judeus, principalmente pelo fato de ser, Jesus, “filho” de estrangeira (presente na genealogia): Rute e até mesmo de mulheres “pecadoras”: Tamar (que se disfarçou de prostituta para se envolver com Judá) e a mulher de Urias (adúltera e amante do rei Davi). Jesus reunirá em seu projeto libertador todos os povos. Nele além de se cumprirem as promessas da Aliança, serão acoplados aqueles que estão esquecidos e marginalizados. Nele, os pobres, judeus ou pagãos, serão colaboradores, construtores e protagonistas do Reino, alternativa de transformação de toda a humanidade.

A misericórdia, a retidão e a justiça serão “bandeiras” desse novo grupo, indicando um Deus Abba, Pai, que se compadece, resgata e proporciona uma via distinta de igualdade e amor entre os homens. Para isso os cristãos aos poucos se efetivarão independentes da estrutura sinagogal, formando uma alternativa assembleia de homens e mulheres, cuja vida se buscará orientar-se no, diante e pelo Reino de Deus.

Resenha à obra (trilogia) “Jesus de Nazaré”


Resenha à obra (trilogia) “Jesus de Nazaré” – do teólogo Joseph Ratzinger[1]

 Felipe Sardinha Bueno

·         Metodologia

 

            Segundo o prefácio da primeira parte de sua obra, Joseph Ratzinger iniciou seu sonho de construção do texto “Jesus de Nazaré”, alguns anos antes de sua nomeação como sumo pontífice da Igreja Católica Apostólica Romana, por meio do colégio cardinalício, no conclave do ano de 2005, após o falecimento do papa João Paulo II.

            Sendo o corpus elaborado em três volumes, possui como temática central a abordagem sobre a pessoa “Jesus de Nazaré”, cuja figura é fundamental na fé cristã, não tanto como uma teoria, todavia uma persona, o próprio Deus feito carne, manifesto na vida concreta – quotidiana, cuja relação com a humanidade revelou e permanece revelando o amor divino filial para com todos os homens.

            Ratzinger deixa claro que apesar da publicação desse grande comentário sobre Jesus, durante seu pontificado, não o apresenta em um formato magisterial, i.é, explicitando seu feitio singularizado, ou seja, fruto de experiência e elaboração de reflexão próprias, passível à contestação teológico-literária de outrem.

            Já nos meandros da primeira parte de “Jesus de Nazaré”, enfatiza o valor da exegese bíblica, principalmente recorrendo a alguns dados histórico-eclesiásticos, como a publicação da encíclica: Divino afflante spiritu em 1943, cuja abertura eclesial à pesquisa hermenêutico-exegética, sob a perspectiva metodológica histórico-crítica funcionou como um despertar e impulso para os estudiosos católicos, tais qual Rudolf Schnackenburg, citado por Ratzinger no prefácio de seu volume primeiro.

            Outros documentos relevantes do magistério como a constituição conciliar “Dei Verbum” (do Vaticano II) e os da Pontifícia Comissão Bíblica: “A interpretação da Bíblia na Igreja” e “O povo judeu e a sua Escritura Sagrada na Bíblia cristã” também se mostraram elementares para o elucubrar teológico de Ratzinger.

            Esse defenderá a importância inenarrável e irrenunciável da exegese histórico-crítica, a investigação das tradições engendradoras dos textos: seu caráter histórico de erguimento escriturístico.

Entretanto, não a apresentará como o único modelo de “mergulho” interpretativo nas Sagradas Escrituras, seguindo os passos do próprio Magistério, o qual aponta, por exemplo, a exegese canônica, a partir da totalidade já formada e presente dos livros bíblicos constituídos no cânon.

            Propõe não um encontro teórico com um ícone da história global, não obstante, uma aproximação autêntica com o Jesus, pessoa, que também sendo histórico, é o “Cristo da fé” – rompendo assim a dicotomia estabelecida nos anos de 1950, imanente aos âmbitos acadêmicos.

            Sua teologia, dessa forma, ratifica a unidade defendida pela Igreja entre as dimensões humana e divina de Jesus, e indica, nas sutilezas de seu fazer teológico, um caminho de discipulado e encontro personalizados com o Senhor.

 

·         “Jesus de Nazaré”: volume I

 

No que tange à estrutura de “Jesus de Nazaré”, não por acaso, Ratzinger escolhe introduzir através do volume primeiro o ministério do Galileu: partindo do batismo no rio Jordão até o evento da Transfiguração, pelo qual no conjunto da vida pública jesuânica, pouco a pouco, o caráter messiânico (crístico) vai sendo desvelado.

No que se refere aos capítulos, se subdividem, respectivamente, da seguinte maneira: o batismo de Jesus; as tentações de Jesus; o Evangelho do Reino de Deus; o sermão da Montanha; a oração do Senhor; os discípulos; a mensagem das parábolas; as grandes imagens de São João; duas balizas importantes no caminho de Jesus: a confissão de Pedro e a Transfiguração; e as autoafirmações de Jesus.

 

O Reino de Deus:

 

 “Depois de João ter sido preso, Jesus veio para a Galileia. Ele pregava o Evangelho de Deus e dizia: Completou-se o tempo, o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1,14ss) – Ratzinger apresenta ainda nesse primeiro livro, conforme citado acima (no capítulo terceiro) a questão sobre o Reino de Deus, princípio conceitual tão debatido pelos teólogos, apesar de unanimemente se aceitar como o centro do anúncio evangélico.

Alguns tendem a gerar certa esquizofrenia entre o Reino, Jesus e a Igreja, secundum a denúncia do Autor. Outra visão concorde a Ratzinger defenderá, em contrapartida, a complementação semântica entre eles.

O Teólogo cita três proposições:

Uma configura-se a partir do Reino como a identificação imediata com o próprio Jesus, uma espécie de “autobasileia” (Orígenes): Jesus é o Reino feito presença já no meio de nós.

A outra, sob uma perspectiva idealista: o Reino como algo proveniente do interior (espiritual) advindo para a atuação do homem (do interior para a ação), e ainda como uma explicação eclesiológica: não a plena equivalência, mas a aproximação entre Reino e Igreja.

Certamente, não se poderá negar a relação dos pontos-de-vista elencados entre si, contudo deve-se ter em conta que os evangelhos transparecem uma realidade maior acerca do Reino:

São abarcadas diversas realidades, as quais revelam um projeto de Deus de reinar no mundo, ou seja, onde a Presença, que é Jesus-Reino, auxiliada pela Igreja (promotora das sementes do Reino), transmite os valores de um mundo distinto, onde a solidariedade e o amor devem ser as bandeiras norteadoras da práxis.

 Conforme essa conjunção dos conceitos acima reiterados, o Reino não se esgota em uma única perspectiva, mas se abre para o maior, para o bem instaurado no meio dos homens, como primícias do sinal escatológico de vida plena (cf. Jo 10,10) para todos, culminada na eternidade.

 

·         Jesus de Nazaré: volume II

 

Dando continuidade à sua produção intelectual, o papa redige mais dois volumes completando o ciclo acerca de “Jesus de Nazaré”.

O volume segundo com o subtítulo: “Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição” – açambarca exatamente o período crítico, e ao mesmo tempo, grandioso do ministério jesuânico, dos momentos antecedentes à sua paixão e morte, ao mistério da ressurreição, o qual é envolto.

Sendo o filho de Deus morto, poderá haver esperança?

A glorificação de Deus pela ressurreição permitirá uma nova hermenêutica para os homens, responde a reflexão “ratzingeriana”.

O Cristo (Messias), salvador, ressuscitado, não como um cadáver retornado, mas qual um corpo novo, transfigurado, sinal da nova criação inaugurada, permitir-se-á aos homens uma fé inquebrantável, aberta para o infinito, ao transcendente ilimitado, construtor de um mundo distinto, da ressurreição de todos, da definitiva “vitalização” da humanidade.

Essa se engendrará como uma das temáticas inseridas na segunda parte de Jesus de Nazaré, cuja subdivisão estrutural dá-se pelos seguintes capítulos, respectivamente: entrada em Jerusalém e purificação do templo; o discurso escatológico de Jesus; o lava-pés; a oração sacerdotal de Jesus; a última ceia; Getsêmani; o processo de Jesus; a crucifixão e a deposição de Jesus no sepulcro; e a ressurreição de Jesus da morte.

O papa voltará a afirmar a necessidade de ultrapassar os princípios metodológicos da exegese histórico-crítica, e fundamentará não a pretensão de redação de um manual de cristologia, mormente o seu caráter de valorização, através de suas sinuosidades textuais, o encontro pessoal com o Cristo Jesus:

 

Procurei desenvolver um olhar sobre o Jesus dos Evangelhos e uma escuta d´Ele que pudesse tornar-se um encontro e, todavia, na escuta em comunhão com os discípulos de Jesus de todos os tempos, chegar também à certeza da figura verdadeiramente histórica de Jesus (BENTO XVI, 2011, p. 14).

 

·         Jesus de Nazaré: volume III

 

À guisa de conclusão de seu ensaio teológico, Bento XVI compõe a terceira e última parte, intitulada: “A infância de Jesus”.

Apesar de sua não grande extensão redacional, tal opúsculo possui profundidade reflexiva, apresentando alguns elementos conectados aos denominados “evangelhos da infância” em Lucas e Mateus.

Ratzinger apresenta algumas singularidades, inclusive questionadas peculiarmente pela sociedade, como a questão do presépio, muito mais um símbolo, do que uma concretude histórica, no tocante aos detalhes de quantos e quais animais estavam naquele momento.

Os capítulos se subdividirão da seguinte maneira, respectivamente: “de onde és Tu?” (Jo 19,9); o anúncio do nascimento de João Batista e de Jesus; o nascimento de Jesus em Belém; e os magos do Oriente e a fuga para o Egito.

O texto conclui-se com um epílogo sobre a adolescência de Jesus, fase também envolta por mistério, mas que ilumina uma fase importante na vida do Galileu – seu estar com a família e o povo local, constituintes de sua identidade subjetiva como um ser histórico, encarnado em uma realidade específica.

 

·         Considerações finais:

 

Entre os pontos destacados, ainda no prefácio do terceiro tomo, Ratzinger introduz com uma bela afirmação, fundamental para o estudo cristológico, a qual, também colocamos como predição ao término deste trabalho de comentário textual:

“Estou bem ciente de que esse diálogo, na ligação entre passado, presente e futuro, não poderá jamais dar-se por completo e de que toda interpretação fica aquém da grandeza do texto bíblico” (BENTO XVI, 2012, p. 10).

 

·         Referências bibliográficas:

 

BENTO XVI. Jesus de Nazaré: Do Batismo no Jordão à Transfiguração. 2ª Ed. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007. Vol I.

 

BENTO XVI. Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011. Vol. II.

 

BENTO XVI. A infância de Jesus. São Paulo: Planeta do Brasil, 2012. Vol. III.



[1] Referências citadas no fim deste trabalho.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

CIÊNCIA E RELIGIÃO

"Meus amigos, para homens destinados, como vós, a associar numa mesma existência o trabalho científico e o esforço cristão, é indispensável que as relações mútuas dos dois domínios <Ciência e Religião> sejam tão claras quanto possíveis". - Pe Pierre Teilhard de Chardin. (in, Ciência e Cristo).